O trecho da canção de Cazuza, ao nos exortar a pedir piedade para a gente careta e covarde, descreve hoje o cenário poético da cidade de Palmeira dos Índios. Há um incêndio sob a chuva rala. Demonstração do fenômeno social palmeirense foi dada no último sábado, dia 6, véspera de nosso “Independence Day”.
Seres extraterrenos (aos olhos dos que nunca viram aquilo) tomaram a Praça do Skatenum dia ameaçador para qualquer evento que dependesse de céu aberto. Como, para aquele mais de meio cento de estranhos seres, a poesia é o sol que os ilumina mesmo na treva da noite, lá estavam reunidos, a partir das 4 e 20 da tarde, para três horas seguidas de “Sarau da Independência”. E o sol da poesia, em raios fúlgidos, brilhou no céu da praça a todo instante! Esse brilho pode ser vislumbrado na singela cobertura em imagens e crônica feita pelo professor e blogueiro Edmilson Sá.
Palmeira dos Índios realizou muitos saraus no passado. Nos tempos de Graciliano Ramos e Chico Nunes (primeiras décadas do século XX) eles eram bastante comuns. No entanto, eram eventos restritos à elite local, de caráter oligárquico e conservador, bem no estilo da panelinha que fundou a Academia Brasileira de Letras, arquétipo de tudo o que é agremiação literária por esse Brasilzão afora… É por causa dessa associação que artistas como Jorge Schutze, professor do IFAL e um dos ocupantes artísticos do espaço público recentemente reinaugurado (primeiramente pela população, que cansou de esperar a conclusão da reforma que durou mais de três anos e, depois, pela prefeitura, ao lançar o Programa Praça da Gente), se incomodam com essa denominação para o evento realizado no sábado: “Eu tenho uma crise com esse nome: ‘sarau’. Me remete sempre para aqueles encontros aristocráticos dos poetas parnasianos do século XIX”.
Enquanto ainda pensamos sobre o que é esse movimento, o que podemos dizer no momento é que ele é composto e protagonizado em sua ampla maioria por jovens amantes da poesia que transitam por múltiplas linguagens e estilos artísticos, tendo sido articulado por quatro poetas entre 17 e 19 anos – Naillys Araújo, Rafinha Costa, Milena Correia e Jéssica Fonseca –, todas estudantes do IFAL, atual nicho da produção, circulação e consumo de obras literárias em Palmeira dos Índios. Elas se juntaram a outros fazedores de cultura e tradicionais frequentadores da Praça e o movimento, consciente ou inconscientemente, re-significou o conceito de “sarau” na cidade.
Encontros da mesma natureza e com o mesmo nome vêm acontecendo desde 2001 nas regiões suburbanas da cidade de São Paulo. Segundo o artigo de Lucía Tennina, professora de literatura brasileira e portuguesa da Universidade de Buenos Aires e estudiosa desses movimentos, “Os saraus da periferia conformam um circuito atravessado por uma rede de frequentadores, que transitam de um bairro a outro sem levar em consideração as grandes distâncias geográficas, nem as distâncias que impõem a realidade do tráfico e da pobreza. Partindo da ideia de que um espaço não se define a partir de pontos cardeais, mas que está determinado, caracterizado e distinguido a partir de uma dinâmica social, pode-se compreender nos saraus a disposição do espaço ‘periferia’ em termos distintos ao que expressa o sentido comum”.
Em entrevista concedida no início do ano a O Globo, Sérgio Vaz, poeta que foi um dos iniciadores desses saraus contemporâneos de Sampa, comparou o momento a uma “primavera periférica”. “Vivemos uma revolução de formação de escritores, e principalmente de público leitor, e isso conquistamos através dos saraus. Nunca participamos de um edital, nunca tivemos uma grande editora por trás, nenhuma livraria veio até aqui, o poder público nos ignorava”, afirmou ele. Conforme a mesma reportagem, Vaz também enxergou na proliferação de saraus uma estratégia para que milhares de moradores passassem “a querer mudar a periferia e não se mudar dela”.
Como se observa, tanto no caso de Sampa (onde a prefeitura já chegou a fechar o cerco contra os saraus de periferia) quanto em Palmeira dos Índios e outros lugares, os saraus contemporâneos, além de valorizar talentos, têm sido espaços públicos de diálogo, produção, resistência, e de construção da identidade cultural urbana.
O próximo encontro poético palmeirense está marcado para o dia 16 de setembro, às 4 e 20 da tarde. Será o “Sarau Alambucano”, onde, em vez de celebrar a separação política de Alagoas e Pernambuco, celebraremos a nossa integração cultural através dos poetas que representam ambos os Estados.
2 Comments
Beleza
Muito massa!